Insatisfação Corporal

Camila Elias
5 min readApr 4, 2023

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A gente aprende desde cedo que nosso CORPO fala. Não estou falando de neurolinguística e comunicação não-verbal, tô falando de anatomia: o tamanho do nosso corpo — em uma sociedade com um padrão bem definido de beleza — determina muito sobre nosso futuro.

Eu sempre fui uma criança muito desligada, de boas, good vibes… então hoje faço terapia para processar coisas que não entendi lá atrás.

Uma dessas coisas era evidente: meu medo de crescer. Diferentemente das minhas amigas, eu não queria ser adulta. Adorava ser a filha caçula, única menina, num lar amoroso e com todos os privilégios possíveis.

Lembro de um caso marcante: um baile de carnaval em que eu queria ir de fadinha, uma fantasia antiga do ballet que mal servia mais em mim. Mas quem foi com ela foi minha priminha, e sobrou para mim uma fantasia minúscula, que em nada cobria meu corpo e em nada era confortável para brincar o carnaval. Não há culpa nem perdão, mas foi mais um passo no meu ódio por aquele corpo “grande”. Porque eu só queria continuar sendo criança.

A Mila com 9 para 10 anos já tinha curvas — e odiava.

Mas meu corpo não me ouviu. Cresceu. E cresceu mais rápido do que o das minhas amigas: enquanto elas ainda eram bem magrelinhas, eu já usava sutiã (e odiava). Tinha curvas, quadril, bumbum grande. E morria de vergonha de ser tão diferente dos meus pares. Na verdade, sofria bullying por isso. Na época a gente chamava de piada. Brincadeira. Lembro de ganhar das minhas amigas, de aniversário, uma calçola de vovó enorme, toda assinada por elas. Rimos muito, mas em algum lugar eu me envergonhei do espaço que meu corpo ocupava no mundo.

Já na pré-adolescência, logo após a primeira menstruação, meu corpo mudou ainda mais. Hormônios a mil, descendência árabe, ovário policístico e pronto: cintura fina e quadrilzão. Eu ia para a escola com o blusão amarrado na cintura, cobrindo o bumbum, e com o uniforme beeeem largo, herdado dos meus irmãos mais velhos. Vergonha, cada vez mais.

Foi assim que aprendi a cobrir meu corpo, e só descobri que era “gostosa” quando comecei a namorar. Aí comecei a ver meu corpo com outros olhos, mas durou pouco. Logo a ideologia da magreza voltou — ela sempre volta, e voltou com tudo.

Mila adolescente, em vias de fazer sua primeira dieta.

Nessa época fui apresentada à minha primeira dieta. Não era nada “maluco”, era uma inofensiva reunião semanal nos Vigilantes do Peso. Segui tudo direitinho, perdi rapidamente 10 quilos. Óbvio que os encontrei virando a esquina.

Na adolescência também peguei ódio de fazer exercícios físicos. Quando se movimentar deixou de ser sinônimo de brincar para virar tortura pré-pesagem na balança.

De lá pra cá foram mais de 25 anos de dietas repletas de privações. Nesses anos todos, ou eu estava sofrendo com as restrições impostas pelas dietas, ou estava me escondendo para comer. E rápido, enfiando tudo goela abaixo, para ninguém ver. Eu não sabia que estava desenvolvendo uma compulsão. A sociedade me via apenas como uma “gordinha safada e preguiçosa” e era isso que eu achava que era. Mais vergonha.

Depois dos 30, as coisas pioraram: as dietas restritivas (que eu continuava fazendo) não me ajudavam mais. Pelo contrário, causavam um efeito rebote, e meu corpo ia aumentando, aumentando…

Então eu era uma mulher de 30 anos, obesa, sedentária, com ovário policístico, pânico/ansiedade (tomando um remédio que abre o apetite, mas que foi o único com o qual me adaptei), com compulsão alimentar não identificada. Saí da casa da minha mãe, que sempre foi um lugar de restrição (e eu sei que era “pensando no meu bem” sempre), para uma casa minha. Onde eu poderia comer tudo o que quisesse, sem controle. Foi a gota d’água para o meu corpo “explodir”. Porque eu já não ouvia mais o que ele tinha a dizer. Não sabia onde terminava a minha saciedade e começava a gula. Ia comendo a cada decepção, a cada alegria, a cada dificuldade. Ou só para esquecer, me anestesiar.

Aos 34, tomei uma decisão muito importante, com implicações sérias: fazer uma cirurgia no estômago. Fui, com muito medo de morrer (e poderia ter morrido). Segui o pós-operatório direitinho (afinal, o cagaço de morrer e um estômago em que cabem 50 ml não deixam você ter muita opção).

Aos 36 anos eu estava mais magra do que nunca. Ainda não gostava do meu corpo, principalmente porque tinha muita pele sobrando por conta daquele susto que meu corpo tomou emagrecendo tão rapidamente. Mas eu entrava nas calças que queria usar, pude voltar a usar botas de cano alto, vestidinhos! Comecei a ser elogiada, cada vez mais. Que linda! Que jovem!

Ah, como é bom se sentir amada.

Mila magérrima.

Dois anos depois eu comecei a ganhar peso novamente. O primeiro pensamento foi: “que bom, eu estava mesmo me achando muito magra, com aspecto de doente. Olha, meu bumbum voltando. Que delícia!”. Aos 39 eu tinha o corpo que sempre sonhei!

Mas ele não parou de crescer… Fiz 40 no início da pandemia. Todos fechados em casa, muita ansiedade, medo do futuro… e, de novo, a comida como minha fiel escudeira. Engordei MUITO. Quase tudo o que “perdi” após a cirurgia. E voltei a odiar meu corpo. Com força.

Fiz algumas dietas, novamente com o resultado esperado: efeito sanfona.

E agora, aos 43 anos, estou me tratando pela primeira vez com uma nutricionista comportamental.

Mila hoje. Ainda com vergonha de se fotografar de corpo inteiro, mas sonhando em quebrar mais esse preconceito.

É estranho. São anos e anos de teorias erradas sobre corpo e saúde. Muita restrição, muita culpa. Desconexão total com minha fome e meu prazer ao comer… e olha, tá difícil. Parece que não estou saindo do lugar, mas sei que estou (é só parar de focar nos números, na balança e focar na minha conexão com o ato de comer). Sei que estou saindo do lugar principalmente porque consegui escrever esse texto aqui, na esperança de ajudar alguma mulher, alguma menina a aprender a não odiar seu corpo. A ouvir suas necessidades e seus desejos também. Se aprendermos de pequenas a ouvir o que o nosso corpo fala (e não os limites impostos por uma sociedade doente), podemos ter uma relação saudável com a comida. Os alimentos têm a função de nutrir, mas também de nos dar prazer. E não está errado sentir prazer ao comer! Cada pessoa tem um corpo, uma fisiologia, uma constituição. Tá tudo certo. Não precisamos nos encaixar em nada apenas pela estética. O seu tamanho não diz nada sobre quem você é. Eu digo isso para quem me lê — mas torcendo para internalizar essa ideia também.

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Camila Elias

Textinhos e textões de uma garota do século passado — escritos no século XXI. https://www.instagram.com/mila_elias/